O consagrado arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que no dia 23 de maio nos deixou, eternizando-se enquanto legado, concedeu entrevista à Revista América #1 publicada há pouco mais de dois anos. Nesta revista da pós-graduação da Escola da Cidade, o arquiteto, cujas reflexões estão no bojo do projeto editorial da publicação, expande – como fez em diversas outras ocasiões – o conceito de arquitetura atrelando a ela as dimensões geográfica e política.
O território sul-americano
"A divisão dos países americanos é uma coisa artificial. Vamos assumir a responsabilidade das coisas como estão, e nos unir para trabalharmos juntos e não ficar discutindo fronteiras. A posição do colonialismo é tão estúpida, que nem dá para discutir. No Tratado de Tordesilhas os portugueses e os espanhóis dividiram a América numa linha reta. Você só pode fazer, com uma linha reta, a divisão de um presunto, não de um território onde há um rio que nasce em um país, passa para outro, e volta para este. Por que aqui é Brasil e lá não? É tudo artificial...
Por que diabos o Chile é uma tripa daquele tamanho do lado de lá? Portanto, vamos assumir a responsabilidade política, e gerir como um território e não como países que vão brigar por fronteiras. É um absurdo a Bolívia e o Paraguai não terem um porto de mar. Tem que propor, em um conselho latino americano, que Peru, Chile e Bolívia sedam território, em contraponto, nós, do Brasil, cedemos também. Porque dizer “geograficamente” eles não têm... foram os portugueses e espanhóis que começaram com essa estupidez, que é política."
– Paulo Mendes da Rocha, 2018.
Projeto para um memorial da América Latina
“Isso foi uma aventura pessoal. Quando surgiu a ideia por razões políticas do Memorial da América Latina, eu fiz o projeto na minha cabeça. Mas depois foi combinado com o Niemeyer. Justamente o que estávamos falando, tratado de Tordesilhas... O Atlântico somos só nós, a turma toda não conhece. Eu pensei: o Memorial da América Latina é a ligação Atlântico-Pacífico. Então vou procurar na estrada para Santos, um lugar no limite antes de começar a descer, ali faço um desvio, faço uma estradinha de asfalto, de não mais que 3 ou 4 quilômetros, até chegar em um ponto de onde ainda não se vê o mar, mas que ele esteja logo ali.
Então faço uma praça, para ter estacionamento. Você entra numa grande rampa e não vê o mar, mas ali de dentro, com rebaixamento — um grande auditório, e todos esses programas que o Niemeyer fez em prédios separados — há um grande salão que pega uma frente de 80, ou 100 metros, uma fenestra que aí sim você vê o Atlântico. Fazem vão de 80 metros para ponte com locomotiva passando. Com carga nenhuma em cima, só 50 cm de terra, 80 metros não é nada, não precisa mais, como vão estrutural... Talvez seja muito, podia ser 50, sem nenhum pilar... O quanto vocês quisessem. Com essa fenestra a la olho de esquimó, você vê o mar, Santos, vê tudo. A turma que vem do Peru, de vários lugares, chega de avião, chega de ônibus, de onde quiser e tem essa visão. Vai ver o atlântico e a serra, de dia, de noite, com chuva, é a visão de quem chegou a primeira vez vindo do outro lado.
Lá em cima não precisa nem ter praça, não deve, pode ser o que quiser. Uma entrada discreta, não precisa ser acanhada, uma rampa, uma porta pequena, um mistério até o mergulho e entrar lá dentro. Não tem fachada, o próprio pavilhão interno é uma surpresa. Aí que tá o que é arquitetura: uma transformação da natureza... É bonita essa ideia, não? Não há desenho, eu mesmo não tomei nota, acho que não fiz nenhum rabisco, mas o projeto estava feito. Se há uma coisa que a gente não sabe, e multiplicando a ideia do ponto de vista literário e da imaginação... Nós temos medo e espanto — nós temos medo da liberdade. O que deviam dizer para os estudantes é que, a primeira coisa que você precisa aprender, é que você tem liberdade para fazer o que quiser. E como você tem medo da liberdade, você quer me perguntar enquanto professor o que fazer, o que eu posso fazer, o que não posso, o que é detalhe, o que é design, o que é urbanismo, o que é arquitetura, planejamento territorial.... tá tudo dividido hoje, né?
Não! Mas, ligação atlântico-pacífico, isso não é arquitetura. Ah, não? É o que então? Seria lindo fechar assim. Aí vocês relatam: tivemos um papo.” – Paulo Mendes da Rocha, 2018
Este ensaio é um excerto de entrevista realizada em agosto de 2018 pelos professores Alexandre Benoit, Fernando Viégas, José Paulo Gouvêa e Marianna B. Al Assal, originalmente publicada na Revista América #1 da Associação Escola da Cidade e disponível para consulta aqui. Na publicação original, abrindo o dossiê “Civilização América”, que buscou por múltiplos enfoques (da leitura gráfica do território, desenho e projeto à abordagem histórica, teórica e conceitual) investigar os sentidos que esse recorte possui na constituição da pós-graduação na Escola da Cidade, Paulo Mendes da Rocha fala do ensino de arquitetura, do aprender com a cidade e das visões de paisagem das Américas.